quarta-feira, 15 de abril de 2009

Dona Guidinha do Poço - Considerações Sobre Sentimentos

É um engano querer-se que sejam veementes, vulcânicos, assoberbantes, certos sentimentos. As afeições verdadeiras, legítimas, têm por cunho a brandura, um certo estado crônico; são como uma doença que se sofre em um órgão essencial à vida, mas que não nos perturba essa mesma vida, que não no-la impede, que às vezes parece até não existir, e que só uma vez por outra nos avisa de que estamos minados por ela, sem remédio.
Ninguém pode avaliar o grau de afeição em que tem a outrem. Amicus certus in re incerta cernitur. A afeição é como alguns tumores que só doem quando se magoam.
Outro sinal de afeição é quando posta em evidência pela morte, pela ausência, ou por qualquer motivo, quando em estado agudo, em crise de lágrimas, em aperto de garganta, a criatura tem o seu sentimento pelo mais justo, pelo mais nobre, pelo mais sagrado. É nessas ocasiões em que o homem é verdadeiramente puro, seja ele um celerado. Nesses momentos não tem inimigos, nem aversões, nem rancores, nem ódios, e seria capaz de agraciar ao mundo inteiro. Todo ele é a própria emoção, e nem há lugar para outra coisa. Está inundado. Só se vê através da pureza de suas lágrimas.
Outra característica é a necessidade de esvaziamento: é um açude cheio, que deve sangrar. Transborda. Aí vem o grito, a lamentação, a lamúria, os impropérios, e até a blasfêmia; noutros a confidência; uma certa passividade, porque todo o trabalho de eliminação está sendo feito pelas idéias. Como na embriagues, nessa crise aguda põe-se ao claro o temperamento, a educação, o caráter, e sobretudo a condição presente da criatura. Um mesmo indivíduo que há anos sairia a correr pela rua, desgrenhado, hoje ficaria inerte, petrificado ou doido de mudez, conforme à modificação que lhe houvessem imprimido as voltas que o mundo dá.
A explosão é própria dos sentimentos excessivamente fortes, um tanto de superfície; o manso deslizar é das águas profundas e perenes.
Há temperamentos em que é tal a persistência do afeto, que lhes é mister personifica-los de novo, e assim se explicam alguns esquisitos casamentos de viúvos. É essa teimosia de imagem que faz a gente, ainda por muito tempo, como que não acreditar no desaparecimento de uma pessoa, cuja morte, entretanto assistimos com nossos olhos.


Texto extraído do livro Dona Guidinha do Poço ( com algumas pequenas modificações para valorizar o sentido)

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