quarta-feira, 15 de abril de 2009

Meditações sobre o amor

"... e quero que a senhora me responda, pelo amor
de Deus, se isto é amor ou não é. Gosto dele mas me
revolto com certas exigências, me irrito com certos
defeitos, desejava que fosse diferente.
E no final das contas, não posso dizer
se amo ou se apenas quero bem."

... Aliás, para que me pergunta se ama ? Claro que não ama. Amor é jogo forte, só vale no tudo ou nada: amar é uma aventura heróica e insuperável. "Give the world for love and consider it well lost". Fora disso, tudo é perfumaria, amor suposto, talvez querer bem ou gostar- amar, nunca. Saiba ainda que, ao contrário do que se pensa, amor é coisa rara. Não é a todos que se apresenta oportunidade de amar, nem se encontra capacidade de amar em todos a quem oportunidade se apresenta. É mister que se reúnam capacidade e oportunidade, ocasião e pessoa. Quanto ao objeto do amor- isso é somenos. Todos sabem que é melhor amado aquele que menos o merece, ou aquele que nem sequer tem consciência do amor alheio por si. Porque jamais os olhos ou a inteligência ajudam o coração amante, ou, se o ajudam, fazem-no de um modo passivo: apagando-se, deixando de enxergar e de discernir, fugindo ao exercício do seu ofício natural que é prevenir o dono contra surpresas e maus passos.
E pois, se você ainda tem olhos para enxergar as feiúras no seu suposto amado, se tem cabeça para lhe descobrir defeitos, é porque não ama. Se ele não lhe parece belo, irresistível, único- é porque não ama. Se por ele não está disposta a perder tudo, nome, fama, amor-próprio, corpo, sangue, alma e divindade- então não ama. Se não se sentir capaz de repetir a frase daquela mulher que rezava assim: "Minha Nossa Senhora, fazei com que ele não me bata, porque se ele bater eu sei que agüento !"- se não é capaz de rezar essa reza, para que ilude a si e aos outros falando que ama ?
Se qualquer outro homem do mundo, seja embora um artista de cinema (seja embora Gregory Peck ou até Antônio Vilar), se qualquer homem lhe parecer mais interessante que ele- então não o ama.
Jamais se cansar da presença dele- mesmo quando ele é chato; jamais lhe enjoar a voz, as anedotas repetidas, os gestos, os cacoetes; jamais ficar farta de seus carinhos; jamais, oh jamais, recordar nada nem ninguém, nem rememorar o passado, nem evocar o futuro, se acaso ele não for personagem desse passado ou candidato a esse futuro- isso é que é amor. Achar explicações e desculpas para todas as suas debilidades e fraquezas: se bebe é porque considera esse mundo mesquinho demais e na bebida se evade da prisão terrena; se é pequeno- não são os pequenos frascos que encerram as grandes essências ? Se é enfermo, ou fraco, ou débil- é que a grandeza da alma foi excessiva para o canal invólucro; se é magro, é porque a chama do espírito consome nele a vil matéria; se é gordo, será porque não sofre inquietações nem remorsos, e, é natural que desdobre em repouso a carne sem pecado. Se é inteligente, perdoem-se-lhes as maldades por amor do talento; se é burro, leve-se em conta a bondade, que um grande coração supre todas as falhas da inteligência. E se, em último caso, é burro e mau- ai, decerto o pobrezinho ficou assim porque muito penou nesse mundo, aprendeu a defender-se, a ficar amargo e a inteligência se lhe embotou nessa luta. E mais carecido deve estar de quem, à força de carinho, faça renascer uma centelha de luz mental e um calor de bondade naquela alma em trevas.
E há ainda o recurso inesgotável dos complexos de infância, há toda a vasta desculpa proporcionada pela psicanálise. Antigamente, diante de um impossível psicológico ou sentimental, a gente "botava para Deus" e continuava amando. Hoje é ainda mais fácil- bota-se para Freud.
As malvadezas, as crueldades, as mesquinharias, as infidelidades, tudo se explica por complexos apanhados na infância. Foi a mãe que não o tratou bem, ou tratou bem demais; foi o pai que se fez rival do filho e o oprimiu ou ignorou.
Enfim, moça, se não quer passar fome ao seu lado, se não achar bonito não ter o que comer, então não ama, e pronto.
Em matéria de amor, senhorita, de amor de verdade- só existe Amélia e nada mais.


Ilha, Junho, 47

Rachel de Queiroz.

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